Ceticismo contra vacina se espalha por países com mais doses do que braços


Institutos de pesquisa têm detectado reticência na população. Sondagem feita no fim de março, em parceria do Marist com a NPR (a rádio pública americana), mostrou que um em cada quatro conterrâneos de Biden negaria um imunizante, seja de qual laboratório fosse. Havia ainda uma fatia de 5% de indecisos.

O risco, apontam cientistas, é de que tamanha resistência comprometa a imunidade de rebanho, ponto em que o vírus não consegue mais circular livremente por uma sociedade. Homens republicanos que moram em áreas rurais puxam a ala hesitante, mas todos os grupos demográficos apresentaram número considerável de rejeição. É alta a adesão a discursos como o do humorista Joe Rogan, dono de um popular podcast. “Acho que você deveria se vacinar se você for vulnerável. Mas se você tem 21 anos e me pergunta, "devo me vacinar?", eu vou falar, "não'”, disse ele em seu programa no mês passado.


Anthony Fauci, diretor do Instituto de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA e principal autoridade de saúde no país, rebateu a falácia. “Se você quer se preocupar apenas com você mesmo e não com a sociedade, tudo bem. Mas se você está dizendo a si mesmo, "mesmo se eu for infectado, posso causar danos a outra pessoa, ainda que não tenha nenhum sintoma…'”

A aversão também captura uma fração da esquerda. A fotógrafa nova-iorquina Jenny Tsai, 46, afirma que três amigos nunca vacinaram os filhos e dizem preferir contar com o apoio natural do sistema imunológico. Outros conhecidos, diz ela, acham que as vacinas anti-Covid são muito novas e, por isso, querem ver se são mesmo eficazes ou se têm efeitos colaterais. “Nenhum deles apoiava Donald, ok?”


Ela se refere ao ex-presidente americano Donald Trump, que, como o brasileiro Jair Bolsonaro, estimulou posturas negacionistas na pandemia -embora curiosamente hoje clame para si o título de “pai da vacina”.

A turma dos céticos se justifica citando motivos como: 1) preocupação com efeitos adversos, mencionada por 52%; 2) plano para esperar e ver se a vacina é segura (42%); 3) desconfiança com o imunizante (37,5%) e com o governo (30%); 4) a crença de que não precisam dessa proteção para lidar com o vírus (25%).


Ou seja, não estamos falando dos movimentos “antivax” de sempre, que recusam toda e qualquer vacina, evocando teorias conspiratórias que sustentam disparates como dizer que um fármaco causa autismo em crianças. Em sua maioria, a relutância tem mais a ver com esta leva de imunizantes em particular, fabricada em tempo recorde pela comunidade científica.

Foto: Agência Brasil

Na Europa, não ajudou o vaivém de agências regulatórias sobre a segurança da vacina desenvolvida por Oxford/AstraZeneca. Ela foi associada a coágulos raros, mas graves. Mesmo antes de a vacinação começar, boa parte dos europeus se mostrou arisca a ideia, de acordo com o projeto Recover Europe, que compilou dados do Centro Europeu para Prevenção e Controle de Doenças para sete países (França, Alemanha, Bélgica, Itália, Espanha, Suécia e Ucrânia).

“Se um estudo científico descobrisse uma vacina para a Covid-19 eficaz e segura, e se ela fosse gratuita para todos em seu país, você a tomaria?” Ante essa pergunta, só 44% dos franceses, o país mais cético da lista, responderam que sim. O resto se dividiu em “não” (28%) e “não sabe/prefere não dizer” (28%).


A maior receptividade, 66%, veio da Itália, um dos países que mais penaram com os impactos da pandemia -o Brasil acabou de ultrapassá-lo no número de vítimas da doença quando considerada a proporção de mortes para cada 100 mil habitantes: 208 pessoas aqui, e 206 na nação europeia.


Em março, o premiê francês, Jean Castex, disse que apenas um em cada três profissionais de saúde do país havia se vacinado, mesmo após ampla oferta para a categoria. Fez então um apelo para que aceitem a picada. “Isso não é normal e compromete nossa habilidade de lutar efetivamente contra o vírus.”


Correspondente do jornal inglês The Guardian na França, Kim Willsher compartilhou em artigo uma piada que circula nas redes: “Como fazer um francês topar a vacina da Covid-19? Diga que ele não pode tomá-la”.


Nem é só uma questão de confiar no imunizante, afirma a artista plástica parisiense Pauline Clément, 28, que simplesmente não vê urgência em ofertar o braço. “Sou jovem, corro todo dia, tenho uma alimentação saudável. Se eu pegar esse vírus, meu corpo é sábio”, afirma ela, evocando um histórico de “athlète” que não poupa ninguém de contrair formas mais severas da doença, fora a possibilidade de ser vetor dela.

O alcance nacional das campanhas de vacinação, via SUS, faz com que o brasileiro seja mais afeito a arregaçar as mangas para a agulhada, afirma Dayane Machado, doutoranda da Unicamp que pesquisa movimentos antivacina. “As vacinas estão presentes no imaginário da população como um direito, como uma tecnologia que é positiva e faz parte da nossa rotina.” Nos EUA, a falta de um sistema público de saúde para todos deixa os americanos mais suspeitos em relação à imunização, segundo Machado.


“Especialmente em comunidades nas quais as desigualdades são muito marcadas, como a latina. Num contexto em que o acesso à saúde é associado ao risco de endividamento extremo, é muito difícil convencer parte da população de que o governo está fazendo algo de graça para beneficiá-la.”
Não à toa, empresas americanas chegam a oferecer dinheiro, folga e cerveja para quem concordar em receber sua dose. Um brinde.