Rodoviária do Tietê vira opção de abrigo para sem-teto no frio e na crise

Nem todo mundo que ocupava uma cadeira nos setores de espera do terminal rodoviário Tietê, na madrugada desta quinta-feira (19), tinha um destino certo. Dezenas de homens, mulheres e crianças estavam ali por causa de uma condição de vulnerabilidade social e para se proteger do frio.

Na largada dessa reportagem, às 22h, já era possível reconhecer os grupos de pessoas que, ao menos na noite em que os termômetros dessa região na zona norte de São Paulo marcavam 8°C, não encontraram outro lugar para se abrigar de maneira fixa ou temporária. Proliferavam na paisagem os cobertores erguidos até as cabeças e as silhuetas que poucas vezes permitiam que um rosto fosse identificado.

A jornada de sete horas completada pela reportagem foi interrompida às 5h, momento em que o metrô voltou a funcionar na estação que fica no local. No início dela, dois idosos se apoiavam um no outro, dividindo uma mesma manta colorida estampada com o desenho de um cavalo. Ao lado, um homem tremia. Por todo lado havia gente ajustando gorros e cobertores, procurando uma posição menos desconfortável para tirar um cochilo no material rígido de bancadas divididas pelos apoiadores de braços.

SÃO PAULO, SP, 19.05.2022 – TERMINAL-SP: Pessoas em situação vulnerável dormem no saguão do terminal rodoviário do Tietê, na zona norte de São Paulo, nesta quinta-feira. (Foto: Marcelo Chello/Folhapress)

O técnico em segurança do trabalho Paulo Rogério Faria, 52, ainda se preparava para tentar um cochilo, se enrolando em um conjunto de manta e agasalho, quando contou à reportagem que usa a rodoviária como abrigo há dois anos, desde que a pandemia começou.

Ele diz que está desempregado desde 2016. Tinha uma residência fixa até o início de 2020 e precisou deixar sua casa por falta de recursos para pagar o aluguel.

Durante uma noite de sono mais profundo, roubaram dele uma mala com roupas e documentos. Aparelho celular ele já não tinha. Faria diz esperar um auxílio de R$ 400 do governo agendado para a próxima semana. “É difícil dormir sentado nesse frio?”, questiona a reportagem. “A gente passa duas noites tentando, na terceira dorme”, afirma.

Outro homem se aproxima para dar seu depoimento.

Gilmar Santos da Silva, 45, conta que trabalhou a maior parte da vida como porteiro. Também busca trabalho. Ele se abriga na rodoviária dia e noite há três meses. Sem dinheiro, buscou refúgio na casa de amigos, mas sentia que estava incomodando o cotidiano da vida alheia. Decidiu ir para a rua. Diz que faz um bico limpando automóveis. Paraibano, tem dois filhos em João Pessoa.

Até a 1h, a noite é pontuada pelos avisos de partidas dos ônibus e outros comunicados transmitidos por alto-falantes. Nesse horário, uma grade é colocada para interromper a passagem entre a rodoviária e a estação de metrô –o terminal diz que a interdição é necessária para a manutenção dos equipamentos e ocorre à noite exatamente pela baixa movimentação.

Os acessos por escadas também fecham. Resta apenas o elevador como acesso para a rua. Ele serve o térreo e o piso superior, onde as lanchonetes também vão parando de funcionar. O movimento cai de forma abrupta. Sobram os grupos de desabrigados e equipes de segurança.

Angélica Leonardo dos Santos, 20, estava na rodoviária desde as 10h, na companhia de sua filha de dois anos. Elas chegaram ali de Caraguatatuba, no litoral paulista, e esperavam um ônibus para a Bahia marcado para deixar São Paulo às 9h desta quinta. Estavam com apenas uma manta fina, Angélica de chinelo e sem meias. No início da noite, não demonstrou preocupação. “Está tranquilo”, disse. Às 3h, Angélica tremia debaixo da manta de flanela colorida. “Agora está muito frio”, comentou.

Por volta das 2h30, bem ao lado dela, dois homens começaram a discutir aos berros. Um deles se revoltou com a história que o outro contava para um grupo de cinco pessoas, incluindo Angélica.

“Ele está falando em alto e bom som que espancava a mulher e a filha”, gritou o homem. “Ele merece estar nessa condição, merece estar aqui.” Um outro homem acordou e interferiu: “Meu senhor, pare de gritar, você quer que os segurança nos tire todos daqui?”

Miguel era o homem que havia contado a história, mas, antes, abordado pela reportagem, demonstrou sofrer de algum distúrbio psiquiátrico. “Em que anos estamos? 1962 ou 1963?”, perguntou. Disse preferir a rodoviária aos abrigos porque as opções oferecidas em São Paulo “são cheias de percevejo”.

Há muitos idosos entre as pessoas que utilizam a rodoviária como abrigo, e alguns deles mostram documentos que lhes dão direito a gratuidade ou descontos na passagem.

No Brasil, pessoas com mais de 60 anos e até dois salários mínimos de renda mensal têm direito a subsídio na passagem de ônibus interestadual. “Completei 75 anjos na rodoviária de Vitória da Conquista (BA), diz João Rocha Alves, 75, nascido em Floresta Azul, também na Bahia.

Durante a noite, funcionários da rodoviária fazem a limpeza das áreas comuns, inclusive das cadeiras, e precisam pedir para que as pessoas se retirem, provocando deslocamentos coletivos pela estação.

No período em que a reportagem esteve lá, não houve nenhum tipo de auxílio, oferta de comida ou algo para se aquecer. Apenas do lado de fora, na rua, um grupo passou de carro distribuindo bebidas quentes e sanduíches, por volta da meia-noite. O prédio da rodoviária tem grandes aberturas para a rua, as pombas entram, e o vento às vezes faz a temperatura parecer menor.

Os dedos deste repórter, às 4h30 estavam azuis, apesar do uso de calça de moletom grosso, uma malha de lã e uma jaqueta. Nesse horário, a rodoviária começou a ganhar movimento e a estação de metrô se preparava para abrir suas catracas. A sensação de frio era intensa, muita gente tremia ou esfregava as mãos nas pernas para se aquecer com o atrito.

Vera Helena, 78, figura conhecida naquele pedaço, não parava de andar entre as lojas e lanchonetes que começavam a se preparar para o funcionamento diário. O cheiro do pão de queijo começou a percorrer todo o espaço. “Estou com fome”, um homem veio pedir dinheiro. Vera Helena diz que passa dias e noites na rodoviária, por segurança. “Lá fora tem muita maldade, muita gente ruim, tenho medo”, diz.

Ela diz ter quatro filhos, mas afirma que prefere permanecer sozinha. Ela reclama do governo e chora em diversos momentos, relembrando coisas do passado, ou uma vida que julga ter sido mais digna até ali. Circulava apoiada em um carrinho para transportar malas, com suas coisas sobre ele e evidente dificuldade para andar. Mesmo assim, sorria quando ouvia a filha de Angélica chamá-la de vovó.

Os desabrigados da rodoviária compartilham alguma solidariedade entre si. Os funcionários de plantão nos banheiros são gentis com as pessoas que entram em saem, para escovar os dentes ou usar os sanitários, ao lado de passageiros.

A reportagem não presenciou nenhum tipo de abordagem inadequada das pessoas abrigadas nem ouviu relatos desse tipo nas entrevistas.

Procurada pela Folha, a assessoria de imprensa do Terminal Rodoviário Tietê diz que a equipe se mantém atenta, durante todo o ano, às pessoas mais vulneráveis que circulam no local. “Quando identificadas, são direcionadas à assistência social mais próxima para que recebam o atendimento e direcionamento adequado”, afirma.

Os gestores do terminal dizem ainda ter uma constante preocupação em “oferecer bem-estar e conforto aos passageiros e usuários”, além de promover e participar de ações como a Campanha do Agasalho, que será iniciada na próxima segunda-feira.