Cerco a Hong Kong é maior desafio da China ao Ocidente desde 1989

Cerco a Hong Kong é maior desafio da China ao Ocidente desde 1989

 

Entre as retaliações, o jornal The New York Times diz que Trump considera, por exemplo, expulsar dos EUA estudantes chineses que tenham alguma relação com academias militares -algo destinado a ser chamado de paranoia racista.

A nova lei, que havia sido anunciada na semana passada, reativou os protestos de rua maciços que vinham abalando o território desde o meio do ano passado. A pandemia do novo coronavírus havia esfriado o movimento, mas já há quase 500 presos na nova onda até aqui.

"Agora vamos começar a guerra dos cem dias", disse por mensagem o ativista pró-democracia Li Tak, baseado na ilha de Hong Kong, centro da região.

Ele se refere ao prazo estimado para a regulamentação da lei, que permite a Pequim suprimir atividades que considere subversivas, de terrorismo ou de secessão no território, inclusive com o uso de agentes de segurança seus em solo -um tabu hoje.

Não por acaso, ao fim do prazo, em setembro, estão marcadas as eleições para o Conselho Legislativo, o Parlamento local. Das 70 vagas, 35 são escolhidas diretamente e as restantes, por guildas profissionais, com a exceção de 5 cadeiras eleitas numa votação mista.

A oposição, que conquistara 17 de 18 conselhos na eleição local de novembro, tinha esperança de aumentar sua posição minoritária. "Duvido que seja possível lançar candidatos", disse Li, que concorreu sem sucesso em 2019.

A plataforma digital LIHKG já convocava para novos protestos, mirando o grande ato anual de 4 de junho, quando se celebra no Victoria Park, na caríssima região de Causeway Bay, justamente o aniversário do Massacre da Paz Celestial. A confusão é certa.

De sua parte, a China adotou um discurso conciliador. Nesta quinta, o premiê Li Keqiang afirmou que o objetivo da lei é garantir o princípio "um país, dois sistemas" vigente em Hong Kong, que será "governada por honcongueses".

A honconguesa no comando agora, a impopular executiva-chefe Carrie Lam, foi ao ponto. "Nós somos uma sociedade muito livre, então por enquanto as pessoas têm liberdade para dizer o que elas quiserem. Direitos e liberdades não são absolutos", afirmou.

Pelo sistema citado por Li, válido até 2047 por acordo com o Reino Unido, Hong Kong será uma ilha de capitalismo desregulado, multipartidarismo, liberdade de expressão e Judiciário autônomo.

Pequim comanda a política local, mas a oposição coexiste com forças pró-China. Com a nova lei, Xi Jinping deixa claro que só quer ver o item capitalismo válido na agenda.

Mas o fim de outras liberdades, se confirmado, tenderá a dificultar a vida dos chineses. Até o ano passado, 65% do investimento externo que entrava e saía da China passava por Hong Kong. Sua Bolsa foi responsável, em 2018, por 73% das ofertas públicas de ações de empresas do continente.

O regime até tentou diversificar seus polos financeiros, investindo em 12 zonas econômicas especiais, mas Hong Kong seguiu soberana, apesar do discurso oficial que lembra a redução da ex-colônia no peso econômico do gigante, de 18% para 3% do PIB de 1997 para cá.

Há problemas de ordem, digamos, capitalista também. Os protestos do ano passado, disparados por uma lei que previa extradição de locais à China que acabou revogada, derrubaram o PIB honconguês, que ficou 1,2% negativo. O preço de imóveis caiu 29%, o turismo colapsou.

A tempestade perfeita veio com o novo coronavírus, que levou o PIB anualizado do primeiro trimestre a cair 8,9%, o maior tombo da história. A previsão mais otimista é 2020 fechar com um encolhimento de 5% do PIB.

O interesse, claro, não é só de Pequim. Hong Kong sempre foi uma fratura da Guerra Fria, um posto avançado do Ocidente na Ásia. Os EUA têm 290 quartéis-generais e 434 escritórios regionais asiáticos de suas empresas lá, e o consulado local, até hoje ao menos, tem status de embaixada.

Ninguém imagina Washington cessando imediatamente seus negócios com a China, que passam muito por Hong Kong, apesar dos sinais crescentes de cortes de laços em setores estratégicos.

Por isso Li Keqiang também disse descartar a "mentalidade de Guerra Fria" e defendeu iniciativas conjuntas, como investimentos de empresas americanas no polo tecnológico de Wuhan (a cidade-origem da pandemia).

Mais que isso, reafirmou, como seus predecessores de 1989, uma prioridade da política sobre a econômica, acreditando que a gravidade fará o resto. A tragédia do novo coronavírus ajuda o processo, retirando fôlego político do Ocidente para um embate mais incisivo, mas a "guerra dos cem dias" está só começando.