Coronavírus: como a covid-19 danifica o cérebro, levando a confusão e delírio
"Eles estavam extremamente agitados e muitos tinham problemas neurológicos, principalmente confusão e delírio", diz ela.
"Estamos acostumados a ter alguns pacientes assim na UTI, que necessitam de sedação, mas isso foi completamente anormal. Foi muito assustador, especialmente porque muitos eram bem jovens, com 30 a 40 anos ou até mesmo com 18 anos de idade."
Helms e seus colegas publicaram um estudo no periódico New England Journal of Medicine documentando os sintomas neurológicos em pacientes com covid-19, que variavam de simples dificuldades cognitivas a confusão mental.
Todos são sinais de encefalopatia, o termo mais comum para danos ao cérebro, algo que os pesquisadores de Wuhan, na China, onde a pandemia surgiu, haviam notado em pessoas infectadas pelo novo coronavírus em fevereiro.
Agora, mais de 300 estudos de todo o mundo descobriram uma prevalência de anormalidades neurológicas em pacientes com covid-19, incluindo sintomas leves — como dores de cabeça, perda de olfato (anosmia) e sensações de formigamento — e graves — como afasia (incapacidade de falar), derrames e convulsões.
Além das descobertas recentes, o vírus, que causa majoritariamente uma doença respiratória, também pode afetar rins, fígado, coração e praticamente todos os sistemas do organismo.
"Ainda não sabemos se a encefalopatia é mais grave com a covid-19 do que com outros vírus, mas posso dizer que temos visto bastante disso", diz a neurologista Elissa Fory, da Fundação Henry Ford, nos Estados Unidos.
"À medida que o número de casos aumenta, você começará a ver não apenas as manifestações comuns da doença, mas também as incomuns — e as vemos de uma só vez, o que não é algo com que qualquer um de nós se deparou em nossas vidas."
As estimativas da prevalência exata variam, mas aproximadamente 50% dos pacientes infectados pelo Sars-CoV-2, o vírus responsável pela covid-19, tiveram problemas neurológicos.
A extensão e a gravidade desses problemas ficaram sob o radar da maioria das pessoas, inclusive dos médicos, porque essas anormalidades neurológicas podem não ser reconhecidas como tal quando aparecem.
Alguém que sofre uma convulsão pode simplesmente parecer atordoado e não tremer por inteiro, por exemplo.
Com suas máquinas, sedações e isolamento, um ambiente de UTI pode exacerbar e induzir delírios, prejudicando nossa capacidade de vincular qualquer sintoma ao vírus.
Para complicar ainda mais, muitas pessoas com sinais do Sars-CoV-2 nunca são realmente testadas para o vírus, especialmente se não têm tosse ou febre. Isso significa que, se elas tiverem sintomas neurológicos, talvez nunca saibam se isso está relacionado à covid-19.
"De fato, existe uma porcentagem significativa de pacientes de covid-19 cujo único sintoma é confusão mental", diz Robert Stevens, professor de anestesiologia e medicina intensiva na Faculdade de Medicina Johns Hopkins, nos Estados Unidos, acrescentando que eles não têm tosse ou fadiga.
"Estamos diante de uma pandemia secundária de doenças neurológicas."
Uma doença diferente
Desde o início da pandemia, tornou-se cada vez mais claro que o Sars-CoV-2 não é apenas uma versão turbo do vírus que causa o resfriado comum: ele tem várias características peculiares, incomuns e, às vezes, aterrorizantes.
Por exemplo, a maioria das pandemias virais, incluindo as de gripe, têm uma curva de mortalidade em "U", matando os mais jovens e os mais velhos. Mas o Sars-CoV-2 normalmente causa apenas sintomas leves em crianças.
O novo coronavírus também afeta desproporcionalmente os homens: eles são até 70% dos internados em UTI em todo o mundo, embora homens e mulheres tenham sido infectados em taxas iguais.
A hipóxia silenciosa é outro mistério. Nosso sangue normalmente apresenta níveis de saturação de oxigênio de cerca de 98%. Qualquer coisa abaixo de 85% pode nos fazer levar à perda de consciência, coma ou até morte.
Mas um grande número de pacientes com covid-19 apresenta níveis de saturação de oxigênio abaixo de 70%, mesmo abaixo de 60%, mas permanece totalmente consciente e cognitivamente funcional.
Depois, há o fato de que uma porcentagem enorme de pessoas portadoras do vírus não apresenta sintomas. As estimativas variam, mas um relatório de testes em massa da Islândia descobriu que 50% da população que carregava o vírus era assintomática.
Talvez o mais irritante: enquanto cerca de 80% das pessoas que desenvolvem a covid-19 se livram do coronavírus com facilidade, uma pequena porcentagem piora rapidamente e em poucos dias morre de fraqueza respiratória e falência de vários órgãos.
Muitos desses pacientes são idosos ou têm outras condições de saúde específicas, mas não todas elas de uma vez só.
"Se aprendemos alguma coisa nos últimos dois meses, é que esta doença é extremamente heterogênea na sua apresentação", diz Stevens.
"A doença afeta muitos sistemas vitais diferentes: os pacientes podem morrer não só por insuficiência pulmonar, mas por insuficiência renal, coágulos sanguíneos, anormalidades hepáticas e manifestações neurológicas. Tive pacientes na UTI se recuperando em dois a três dias. Outras pessoas estão no hospital há meses."
Sintomas neurológicos são menos comuns com a covid-19
Embora o impacto do vírus nos pulmões seja a ameaça mais imediata e aterrorizante, o impacto duradouro no sistema nervoso é muito maior e muito mais devastador, diz Chou.
"Embora os sintomas neurológicos sejam menos comuns na covid-19 do que os problemas pulmonares, a recuperação de lesões neurológicas geralmente é incompleta e pode levar muito mais tempo em comparação com outros sistemas orgânicos (por exemplo, o do pulmão) e, portanto, resultar em uma incapacidade geral muito maior e possivelmente mais mortes", diz ela.
Na França, Helms sabe bem quão intensos os impactos neurológicos da covid-19 podem ser.
Ela teve de adiar a entrevista para esta reportagem depois que um de seus pacientes de covid-19 — que recebera alta do hospital havia dois meses, mas ainda sofria de fadiga pós-viral e depressão grave — precisou de uma consulta urgente, por risco de suicídio.
E essa paciente não é única — Helms já viu muitas pessoas em estados semelhantes de angústia.
"Ela está confusa, não pode andar e só quer morrer, é realmente horrível", diz Helms.
"Ela tem só 60 anos, e disse "a covid me matou" — o que significa que matou seu cérebro. Ela simplesmente não quer mais viver. Isso tem sido especialmente difícil porque não sabemos como evitar esse dano. Apenas não temos tratamentos que impeçam danos ao cérebro."
Pacientes com insuficiência pulmonar podem ser colocados em um respirador, e os rins podem ser ajudados por uma máquina de diálise — e, com alguma sorte, os dois órgãos se recuperam.
Mas não existe uma máquina de diálise para o cérebro.
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-53173760