Boate Kiss: anulação de júri reaviva feridas na cidade da tragédia

Pouco após a decisão do tribunal, os quatro foram soltos.

“Mexe com o sentimento das pessoas, que mais uma vez não veem essa maratona de sofrimento ser concluída. O que fica é uma sensação de impunidade muito forte. A cidade sofreu um colapso naquela época e nunca mais se recuperou”, diz o professor sobre a anulação.

Witeck está entre os poucos vizinhos do local que ainda concordam em falar sobre o assunto.

Passados mais de nove anos da tragédia, muitos já não abrem a porta para a imprensa e defendem que é hora do tema ficar no passado.

Além disso, muitos apartamentos dos arredores estão vazios, com placas de venda ou de aluguel.
A gerente de um estabelecimento comercial que fica na rua dos Andradas, a mesma onde ficava a boate, disse que perdeu amigos e conhecidos no incêndio. Hoje, para não pensar na tragédia, ela prefere evitar as notícias sobre o caso. Ela pediu para não ser identificada.

Boate Kiss: anulação de júri reaviva feridas na cidade da tragédia
PORTO ALEGRE,RS,09.12.2021:JULGAMENTO-TRAGÉDIA-BOATE-KISS – Julgamento da tragédia da Boate Kiss, 9° dia, realizado na cidade de Porto Alegre, RS, nesta quinta feira, 09. (Foto: Renan Mattos/Futura Press/Folhapress)

Na fachada do prédio onde funcionava a boate foram feitas três pinturas. A obra foi encomendada pela Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, que costuma realizar atos em frente ao local, e instalada pouco depois do júri de dezembro do ano passado, que condenou os quatro réus por homicídio com dolo eventual.

A instrutora de trânsito Josene Broll, 56, vê a pintura todos os dias. A autoescola em que ela trabalha fica exatamente ao lado do prédio em que funcionou a boate. O imóvel não foi demolido porque pode ser utilizado como prova no processo –existe um projeto para, no futuro, transformar o local em um memorial.

“Cada vez mais a gente vê o tempo passando e a corda arrebentando do lado mais fraco, de quem só fazia bico na boate e não de quem autorizou que ela funcionasse do jeito que estava”, diz Broll.

“Agora, com essa anulação, vai começar tudo de novo, não deixam essas almas descansarem”.

O assunto foi debatido inclusive em um dos pontos de encontros mais famosos da cidade, apelidado de “Boca Maldita”. Presente no loca, a publicitária Bruna Marodin Lemes, 27, diz que a anulação causou um novo processo de luto em Santa Maria.

“Isso traz à tona de novo o sofrimento e a sensação de que nada foi feito”, afirmou. “É muito triste para quem vive aqui, afinal a cidade nunca foi como era antes e a tragédia virou a referência da cidade onde quer que a gente vá”.