Tragédia da boate Kiss completa 10 anos em luta contra esquecimento

“Eu percebo caras feias quando vou trabalhar com camisetas como essa [alusiva aos sete anos do incêndio]. Muitas pessoas simplesmente não querem ser lembradas da Kiss, mesmo que não haja nada impedindo que algo assim aconteça novamente”, diz Sindi Caroline Chaves, 28, integrante do coletivo.

Cida também cita a prevenção de novas tragédias como um ponto fundamental da memória da Kiss. Menciona dois incêndios recentes semelhantes ao de Santa Maria, coincidentemente ocorrido com dois dias de diferença. Em 21 de janeiro de 2022, a falha em um equipamento pirotécnico, ainda em investigação, deixou 20 feridos em um resort em Cesário Lange (SP). Já no dia 23, em Camarões, a chama de um fogo de artifício atingiu o teto de uma boate da capital Yaoundé, matando 16 pessoas.

Há quatro meses, passada a fase crítica da pandemia de Covid, a AVTSM (Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria) retomou as vigílias no centro de Santa Maria, em uma tenda que exibe um banner com as fotos das 242 vítimas. Os familiares realizam um ato mensalmente, sempre no dia 27.

Relatam uma maior hostilidade, com olhares pouco amistosos de transeuntes e críticas nas redes sociais. “"Vocês não deixam eles descansarem", eles nos dizem. Agora saiu o trailer da Netflix e eu tive de parar de ler os comentários” diz Marilene Santos, vice-presidente da AVTSM, em referência à minissérie “Todo Dia a Mesma Noite”, baseada no livro homônimo da jornalista Daniela Arbex.

Marlene, que perdeu a filha caçula Nathiele dos Santos Soares, 21, e o genro, Alan Raí de Oliveira, 26, não vê possibilidade de descanso sem que haja culpados na prisão pelas centenas de mortes.
“Nos mandam tirar a barraca da praça, dizem que queremos dinheiro, que queremos vingança. Não queremos vingança, queremos Justiça. Para ter descanso, temos primeiro de encerrar isso [o processo]”, diz a mãe de Nathiele.

Foto: Silvio Avila/AFP

Ao longo desses dez anos, Marilene tem cada vez mais dificuldade de encontrar solidariedade até de familiares próximos, que insistem que “nada vai fazer eles voltarem”.

Mas o peito afundado de saudade ainda é uma constante para ela. O sentimento piora aos domingos, dias em que a filha a visitava, e às vezes a toma de assalto. A última vez foi quando encontrou um bilhete antigo com a letra da filha perdido em uma gaveta, escrito atrás de uma receita de bolo. Virou relíquia.

Superar o trauma além do tribunal Outra unanimidade entre os familiares é o cansaço, acentuado com o avanço da idade dos pais – seis deles já faleceram desde 2013 -e pela frustração com a anulação do julgamento, em agosto passado. Algo que o sobrevivente e testemunha no júri popular Maike Adriel dos Santos, 30, classifica como “tortura psicológica”.

“Os únicos punidos até aqui pela tragédia somos nós. Somos e continuamos a ser punidos. Mas vou procurar forças para testemunhar outras dez vezes se for preciso”, diz o jovem que perdeu sete amigos na primeira e única vez que entrou na Kiss.

Além de Maike, hoje formado em desenho industrial e que dedicou seu TCC a estudar o ambiente da boate no quesito segurança, ganham destaque nos eventos e ações jovens como Kelen Ferreira, terapeuta ocupacional que teve uma perna amputada em razão dos ferimentos no incêndio e que se tornou uma influenciadora PCD, e o psicólogo Gabriel Rovadoschi Barros, 28, que, após oito anos praticamente sem falar sobre a tragédia, assumiu a presidência da AVTSM.

“Tive diferentes fases nesses dez anos. Era a primeira vez que eu entrava em uma boate, e muito da minha juventude eu perdi ali. Coisas que eu deveria viver nos meus 20 e poucos anos acabaram se deslocando. Eu vinha amadurecendo esse assunto dentro de mim para enfim conseguir olhar nos olhos dele”, conta Gabriel.

Gabriel se diz atento e inconformado com o andamento do processo na Justiça gaúcha, mas pretende priorizar dois outros pontos à frente da associação: cuidar uns dos outros e batalhar por espaços seguros para se falar sobre o trauma na cidade. Um deles pode vir a ser a própria Kiss.

Desapropriada em 2017 pela Prefeitura de Santa Maria, a boate teve o interior conservado para servir de prova no processo. A fachada do prédio foi grafitada com cobranças à 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do RS, onde atuam os desembargadores responsáveis pela anulação.

A fachada também recebeu inúmeros cartazes e mensagens de crianças, todos desbotados por anos de sol a pino. Um projeto de memorial já foi aprovado para ser construído após a demolição da boate, mas a hipótese de um novo julgamento trouxe mais essa incerteza.

Há familiares que defendem que a Kiss fique como está até que a Justiça seja feita, como um emblema. Já Gabriel está entre os que preferem que o memorial seja construído logo e sirva para reflexão e denúncia. Para que a história da Kiss deixe de ser ignorada e passe a ser contada às novas gerações o quanto antes, ainda que sem um ponto final.