Falta de dados e de transparência criam desconfiança sobre a vacina da Rússia

Falta de dados e de transparência criam desconfiança sobre a vacina da Rússia

 

A Rússia, porém, foi a primeira a anunciar a vacinação em massa nos próximos meses. A imunização, desenvolvida pelo Instituto Gamaleya, ainda está em fase 2 de ensaios clínicos. Ao todo, há 27 vacinas em fase de testes em humanos, das quais seis estão em fase 3 (a última antes da aprovação), e 139 em estudos pré-clínicos (em animais), segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde).

Para a bióloga Natália Pasternak, pesquisadora do ICB-USP e presidente do Instituto Questão de Ciência, a falta de transparência é malvista e não representa boa prática científica. "Todas as vacinas sérias feitas por empresas e universidades de renome estão comprometidas com a transparência. Isso não foi feito com a vacina da Rússia, que para nós, cientistas, não existe. Não sabemos nada sobre ela, qual é a tecnologia empregada, os resultados da fase pré-clínica. Não foi feita uma publicação", diz.

Pasternak afirma que, mesmo com atrasos, os ensaios pré-clínicos e resultados das fases 1 e 2 das outras vacinas em desenvolvimento foram publicados em revistas científicas prestigiadas, que têm um sistema de revisão por pares.

Das vacinas em fase 3, a da empresa chinesa Sinovac, cujo acordo com o Instituto Butantan visa a produção de até 100 milhões de doses no Brasil, é a única que foge a essa regra. "Me preocupa a falta de publicação dos resultados das fases 1 e 2 da Sinovac. Embora as declarações da empresa e do diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, sejam de resultados satisfatórios, nós [cientistas] gostaríamos de ver esses resultados", diz Pasternak.

O fato de vacina estar na última fase de testes não é garantia de que ela irá funcionar, apesar das publicações de artigos que atestem sua eficácia.

Luciana Leite, diretora do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Instituto Butantan, diz que a aceleração das fases 1 e 2 está sendo aplicada em diversos países, mas não dá para falar em usar a vacina sem terminar a fase 3, que pode durar até um ano. E, mesmo após essa etapa, o acompanhamento não para.

"Temos depois a fase 4, ou de fármaco-vigilância, sem prazo definido. Alguns efeitos são tão raros que só observamos quando o fármaco é usado em milhões de indivíduos, não aparecem em testes com mil, 2.000 ou 10 mil pessoas", diz.

Ela diz que até é possível que a Rússia tenha vacina em curto prazo, mas tudo depende de quão restritivos ou permissivos são os órgãos regulatórios do país. Para Leite, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que regulamenta todos os medicamentos e vacinas produzidos ou importados no Brasil, é minuciosa para permitir a produção de vacinas, até para fármacos produzidos fora do país.

Além disso, a produção acelerada enfrenta uma barreira no órgão sanitário. "No Brasil podemos ficar tranquilos porque a Anvisa, e quem trabalha na área de produção de vacinas sabe, é muito rigorosa."

No pedido de ensaio fase 1/2 feito pelo Instituto Gamaleya (disponível no site clinicaltrials.gov), a vacina experimental em teste possui dois componentes: um formado pelo adenovírus 26 e outro pelo adenovírus 5. O adenovírus 26 é um vírus causador de gripe em chimpanzés e é o mesmo usado pela farmacêutica Johnson & Johnson (J&J), atualmente em fase 1/2. A Universidade de Oxford criou o próprio vetor viral, chamado ChAdOx1, a partir de um adenovírus de chimpanzés.

Já o adenovírus 5 (Ad5) é um vírus da gripe comum em humanos. Tradicionalmente, vacinas com adenovírus usam essa forma do vírus, como é o caso da chinesa CanSino.

"O Ad5 é o mais comum para produção de vacinas porque foi o primeiro a ser usado [para vacinas] e avançou muito bem nos primeiros testes. O problema é que vacinas com o Ad5 podem não funcionar bem em pessoas que já têm anticorpos contra ele", diz Leite.

As vacinas com adenovírus são chamadas de "vivas" ou atenuadas. Outras vacinas usam o vírus inativado. É o caso da vacina da Sinovac.

A tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) e a da febre amarela são vacinas atenuadas largamente utilizadas. Já entre as vacinas inativadas destacam-se as da raiva, da pólio e a contra a gripe Influenza.

Segundo Leite, vacinas inativadas apresentam melhor resposta imune humoral –ou imediata, relacionada à produção de anticorpos. Até o momento, todas as vacinas contra a Covid-19 em fase 3 e cujos resultados foram divulgados induziram à criação de anticorpos neutralizantes. Esse tem-se mostrado um ponto favorável na eficácia das vacinas, embora não se saiba ao certo por quanto tempo essa resposta permaneça no corpo.

Já a resposta imune celular é mais lenta, mas mais duradoura. As vacinas vivas ou atenuadas tendem a produzir melhor resposta celular, afirma. Nas vacinas inativadas adicionam-se adjuvantes, como o hidróxido de alumínio, para ajudar nessa resposta celular.

As vacinas da Oxford, J&J e Moderna mostraram bons resultados para a presença de linfócitos T nos voluntários.
Para Leite, as vacinas na fase 3 são promissoras, e não deve haver politização ou receio. "No Brasil, não é só o movimento antivacina, tem a questão política. Vamos ver na hora que tivermos a vacina se os governos vão bancar e apoiar."

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