Depressão, autismo e mais… a cannabis vai muito além da maconha, diz médico de Curitiba

Depressão, autismo e mais… a cannabis vai muito além da maconha, diz médico de Curitiba

O médico curitibano Renan André Abdalla de Souza, 29 anos, um dos mais jovens médicos prescritores de cannabis no país, professor da área e dono da Renasce – primeira clínica do sul do Brasil focada em tratamento com cannabis – não tem dúvida de que o produto auxilia no tratamento de pelo menos 100 patologias.

“A planta da cannabis produz mais de 500 compostos naturais. Mas a magia não é só pela planta. O principal está no nosso corpo. Todos temos o sistema endocanabinoide, que se liga desde o cérebro, aos músculos, ao sistema imunológico, ao pâncreas, ao coração, ao intestino, aos ossos. Quando começa a sinergia entre a planta e o nosso sistema endocanabinoide, ela tenta regular todo o sistema. Por isso ela é usada em mais de 100 patologias”, explica o médico, membro da SBEC (Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis).

Em entrevista ao Portal Banda B, o dr. Aballa fala sobre os benefícios, o preconceito, o desconhecimento, as barreiras, as prescrições, produção, preços e muito mais.

Banda B – O que já se descobriu sobre de que forma a cannabis medicinal pode auxiliar no bem estar das pessoas?

Dr. Renan Abdalla –. A cannabis auxilia em mais de 100 patologias. Não só por conta da planta, que produz mais de 500 compostos naturais O espectro é imenso, como autismo, epilepsia, paralisia cerebral, inclusive em crianças. Para jovens e adultos, a cannabis no tratamento da enxaqueca, ansiedade, depressão, insônia, distúrbios psiquiátricos, até em casos de esquizofrenia. Também temos grandes resultados em doenças autoimunes em geral, doenças genéticas raras, e as neurodegenerativas, como Alzheimer, Parkinson, problemas neurológicos tipo pós-AVC, entre outras.

Muito se ouve falar do CBD (o canabidiol), mas não é só ele. Esse é um fitocanabinoide. Mas há mais outros 150 descobertos até hoje, como THC, THCA, THCV, CBDA, CBG, CBN, entre muitos outros. Além disso, esse composto da planta contém também os terpenos aromáticos, que é o que dá o aroma da planta, e isso também tem seu poder medicinal no nosso corpo.

Cannabis sativa pode auxiliar no tratamento de mais de 100 patologias

Banda B – O senhor fala em mais de 100 patologias, mas com um espectro tão grande assim, o que é comum na ação em todas essas patologias?

Dr. Renan Abdalla – Isso é por conta do sistema endocanabinóide. Sabemos hoje que o canabidiol é ansiolítico, atua diretamente na epilepsia, melhora sono e humor de pacientes com autismo, pacientes com depressão e ansiedade. A gente sabe que o THC tem função importante na questão da dor, agindo sobre receptores opióides. Mas tudo isso pela regulação do sistema endocanabinóide, que trabalha de muitas maneiras, devido aos nossos receptores CB1 e CB2. Tudo isso que digo foi descoberto há 30, 40 anos, pelo pesquisador israelita Mechoulam, o pai da cannabis medicinal.

Estamos onde estamos com a cannabis hoje, ainda muito travada dessa forma, por causa do proibicionismo iniciado nos Estados Unidos. Há uma questão da guerra contra os negros, por exemplo. Lá, eles legalizaram o álcool e passaram a perseguir a cannabis. Há toda essa história de proibicionismo, de preconceito, de lobby farmacêutico. Agora que ela está se disseminando mais.

Banda B – A pessoa precisa de prescrição médica para acessar esse tipo de medicamento, certo?

Dr. Renan Abdalla – Em janeiro de 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, publicou a Resolução (RDC 335) que regulamentou o uso da cannabis medicinal. Desde então, nós médicos ficamos muito mais confortáveis para prescrevê-la, porque é um terreno que ainda tem muitas restrições. O paciente precisa passar por uma consulta e, assim, conseguir uma receita médica. Há vias nacionais e internacionais para seguir a partir deste momento. Aí depende do tipo de paciente e que tipo de composto ele precisa.

Banda B – Quais são as patologias mais comuns pelas quais os pacientes procuram o senhor no seu consultório?

Dr. Renan Abdalla – Hoje, com a pandemia, temos visto muitos casos de ansiedade, depressão, insônia. Também crianças com autismo, epilepsia e paralisia cerebral. Pacientes com dores crônicas em geral, com fibromialgia, com enxaqueca. Idosos com Alzheimer, com Parkinson. E também pacientes oncológicos, com câncer. Estes são os grupos principais. Percebemos que muitos pacientes estão tomando muitos medicamentos e não estão tendo os efeitos desejáveis, além de sentir às vezes efeitos colaterais. Então, a cannabis vem como uma alternativa natural, com muito menos efeitos colaterais.

Banda B: Então, a cannabis entra como algo a mais, é isso? Por exemplo, um paciente com depressão abandona seus medicamentos, ou segue com eles e a cannabis é uma auxiliar?

Dr. Renan Abdalla – Entra como auxiliar no tratamento. Em alguns pacientes, a cannabis interage com certos compostos alopáticos. Com estes pacientes, temos que trabalhar reduzindo danos, fazendo desmame de medicações. Mas em geral, trabalhamos com a cannabis num tratamento conjunto.

Banda B – Há algum uso da cannabis em relação ao emagrecimento?

Dr. Renan Abdalla – Em geral, para emagrecimento a gente não indica. Mas até tentamos auxiliar em tratamentos. Sabemos que um certo composto da cannabis ajuda a diminuir o índice glicêmico, então um paciente diabético pode ter benefícios, mas por emagrecimento, em geral, não. A não ser que o paciente coma muito por ansiedade, por compulsão alimentar, aí a gente trata essa ansiedade, essa compulsão, e pode ajudar.

Banda B: Quando falamos em cannabis, muitos devem lhe que estamos falando de maconha, que pode deixar o paciente viciado entres outros efeitos. Como o senhor responde a este tipo de questionamento em seu consultório?

Dr. Renan Abdalla – É sim muito frequente essa pergunta. Muitos pacientes indagam isso. Quando falamos de dependência, de vício, falamos de pacientes que precisam de doses cada vez mais altas. Vemos isso acontecer muito com alopáticos. Com a cannabis, é o contrário. Conseguimos trabalhar com baixas dosagens. Temos uma curva em U invertida, nesse caso. O paciente chega num certo ponto em que, se aumentarmos uma gota na ministração do óleo, ele descompensa. Então, encontramos esse limite e trabalhamos um pouco abaixo dele.

A cannabis é totalmente contra os vícios, agindo na redução de danos. Muitos pacientes começam a usar e, por conta própria, desmamam remédios antidepressivos, benzodiazepínicos para dormir, opióides para dor – remédios estes que causam muito mais danos e têm muito mais efeitos colaterais. Com a cannabis é o contrário, por ela ser natural e porque nosso corpo é preparado para receber esses compostos da planta.

Banda B – Então, qual é a diferença de uma pessoa fumar maconha, ser dependente disso, para uma pessoa que tem um tratamento feito à base de cannabis? É a dose, a forma como se prepara?

Dr. Renan Abdalla – Quando falamos desse uso adulto, recreativo, não falamos de prescrição médica. A pessoa usa um produto sem saber, muitas vezes, o que tem no composto. Se a pessoa usa, por exemplo, a droga skank, está usando muitas coisas naturais e medicinais, só que de forma descontrolada, e sem um fim além desse recreativo. Aí, o paciente usa para sentir alguma alteração neurológica, ficar fora do seu estado normal, relaxar. Esse é o uso adulto, recreativo.

Quando falamos da forma medicinal, falamos de compostos indicados para aquele paciente. Aí conseguimos trabalhar com a quantidade certa de CBD que aquela pessoa precisa, com um tanto de THC, ou um óleo um para um. Aqui no Brasil, não costumamos prescrever a forma inalada. Prescrevemos mais óleo, spray nasal e pomadas.

Banda B – A cannabis medicinal é ministrada ao paciente dessas formas?

Dr. Renan Abdalla – Quando falamos de cannabis medicinal, isso envolve vários meios de administração. Há pacientes que se beneficiam da forma inalada, outros de spray nasal, outros de uso tópico, com pomada. E a forma mais usada no meio medicinal é a de óleo, em conta-gotas.

Dr. Renan Abdalla na sede da Abrace Esperança, na Paraíba – Arquivo pessoal

Banda B – Gostaria de falar sobre a produção da cannabis. Vi o senhor em fotos cercado de uma plantação enorme de maconha. Onde é? E se o cultivo é proibido, como fica?

Dr. Renan Abdalla – Essas fotos tirei em João Pessoa, na Paraíba. Lá, temos a única associação do Brasil legalizada, autorizada a produzir cannabis e fornecer para seus associados, desde uma liminar da justiça em 2017. É a Abrace Esperança, em que qualquer paciente inscrito pode comprar esses produtos. E para se inscrever, a pessoa precisa de um laudo médico e uma receita médica, além de pagar uma taxa anual de R$ 350,00. Aí sim a pessoa tem o direito de comprar os produtos que estejam na sua receita.

Banda B – Então, de alguma forma, já avançamos no Brasil. Isso, um tempo atrás, não era possível.

Dr. Renan Abdalla – É verdade. Tivemos um grande avanço. Desde 2017, a Abrace Esperança, essa associação, vem fazendo história e abrindo portas. Hoje, são 12 mil famílias que dependem dela, muita gente. Temos outras associações no país que também têm seus produtos, mas sem a liberdade de plantar a cannabis de forma legal. Por isso temos ainda muita importação, com medicamentos vindos dos Estados Unidos, Suíça, Itália, Uruguai, Argentina. Muitas empresas aqui no Brasil fazem esse trabalho de importar. Enquanto aqui não se legaliza e o governo não arrecada dinheiro com isso, os países de fora arrecadam.

Banda B : O que falta, na sua opinião, para essa legalização aqui?

Dr. Renan Abdalla – Caminhamos a passos curtos. Em 2020 tivemos esse grande avanço. Mas para ter noção, a lei da cannabis medicinal na Califórnia foi votada em 1996. E só agora estamos discutindo isso aqui. Em Israel, eles já usam cannabis nos hospitais para pacientes com dor, pacientes oncológicos, na forma inalada mesmo. O paciente vai lá, pega um certo tipo de cannabis específica para dor e pode fumar um ou dois cigarros por dia, justamente para evitar o uso de opióides, benzodiazepínicos, que fazem muito mais mal para a saúde, com mais efeitos colaterais, e nada natural.

O que falta são nossas faculdades ensinarem sobre o sistema endocanabinóide. A residência médica de neurologia, de reumatologia, de psiquiatria, deveria começar a ensinar também o sistema endocanabinóide e como a cannabis pode auxiliar no tratamento de certas especialidades.

Também vejo uma força muito grande do lobby farmacêutico, porque como a cannabis traz muitas vezes o desmame de medicamentos e melhor qualidade de vida, a indústria farmacêutica não é muito a favor.

Dr. Renan Abdalla na sede da Abrace Esperança, na Paraíba – Arquivo pessoal

Banda B – Como o senhor se especializou nessa área?

Dr. Renan Abdalla – Comecei a estudar o tema em 2017, quando a Abrace conseguiu sua liminar que a legalizou. Fui um dos primeiros médicos prescritores a participar com eles dos grupos. E hoje tenho a Clínica Renasce, a primeira focada nesse tipo de tratamento no Sul do Brasil, a segunda do país. Sou membro da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis (SBEC), onde damos cursos, discutimos artigos científicos, casos. Já fiz muitos cursos, em geral, mas ainda não há esse tipo de especialidade no Brasil.

Mas dentro da SBEC, vamos criar essa pós-graduação para médicos. Hoje, já sou professor da área, dou cursos, discutimos as leis com outros médicos. É um conjunto de estudos diários, discussões de casos, de artigos científicos, muitos que vêm de fora.

Agora, no final de 2020, a ONU tirou a cannabis da classificação em que ela estava junto com outras drogas pesadas. Ou seja, não podíamos nem estudar isso. Agora que vamos começar a ter estudos mais avançados sobre o tema, tanto aqui quanto nos Estados Unidos, na Europa. Tudo que sabemos a respeito da cannabis até hoje vem de Israel, onde a pesquisa é livre, sem restrição. Em 2021 deveremos ter um boom nessa área. Hoje já temos vários artigos consolidados, mas isso deve aumentar.

Banda B – E quanto custa um tratamento feito à base de produtos da cannabis? Não é um tratamento que o SUS ofereça.

Dr. Renan Abdalla – Realmente, não tem pelo SUS. Antes, era muito demorado e tudo com preço muito elevado. Hoje, como temos muita concorrência, há uma briga por preço e qualidade. Como temos acesso a produtos do mundo inteiro, temos preços muito acessíveis.

Como tenho a clínica focada nesse tipo de tratamento, consigo também os melhores preços, descontos etc. Para ter noção, na Abrace Esperança, são R$ 350 para se associar. A partir desta associação, eles têm óleos dos mais fracos, na concentração de 1%, a partir de R$ 79. Hoje, consigo fazer um tratamento com um paciente por R$ 200, R$ 250 por mês dependendo da patologia. Já foi o tempo em que isso não era acessível. Hoje, consigo fazer um tratamento com um bom óleo dos Estados Unidos, por R$ 1 mil – 1,100 reais, prevendo três frascos de medicamento, que dependendo dão para uns três, quatro meses. Agora, o medicamento legalizado no Brasil, que vende na farmácia, especificamente, é caríssimo, custa R$ 2 mil, mais ou menos. Há mais de 50 empresas no Brasil, hoje, concorrendo em preços nessa área.

Banda B – Hoje, no Brasil, há uma estimativa de quantas pessoas fazem tratamento à base de cannabis?

Dr. Renan Abdalla – Só a Abrace, da Paraíba, é responsável pelo atendimento de mais de 12 mil famílias. Se somarmos aqueles que fazem importações, devemos ter mais pelo menos outras 15 mil pessoas. E muita gente consegue, também, de forma ilegal, pela internet, o que é um grande problema, já que o paciente acaba não tendo um acompanhamento médico, compra um óleo que não é específico para ele, ou que nem tem o composto, é puro azeite. Daí acaba tendo uma descompensação ou perde a fé e a esperança que a cannabis traz. Acredito que devem ser umas 30 ou 40 mil pessoas, ao todo, no Brasil.