NY legaliza maconha e diz que taxas sobre a venda ajudarão a corrigir injustiças raciais

 

A estimativa do governo estadual é que a legalização da maconha em Nova York pode gerar cerca de US$ 350 milhões (R$ 2 bilhões) em receita tributária anual. Um estudo mais abrangente conduzido pela Associação da Indústria de Cânabis Medicinal de Nova York e pela consultoria MPG traz números ainda mais expressivos.

Estima-se que o mercado da maconha no estado gere US$ 1,2 bilhão (R$ 6,9 bi) em impostos em 2023. Quatro anos depois, a cifra deve ser de US$ 4,2 bilhões (R$ 24 bi). Entre outros impactos econômicos, o estudo aponta que o setor deve empregar 20,9 mil pessoas até 2023 e 76 mil até 2027, movimentando nesses anos, respectivamente, US$ 2,8 bilhões (R$ 16,16 bi) e US$ 10,1 bilhões (R$ 58,3 bi).

Uma das principais bandeiras do projeto também é a reparação dos danos causados às comunidades mais afetadas por décadas de guerra às drogas. Historicamente, negros e hispânicos de Nova York tornaram-se alvos preferenciais das políticas de enfrentamento aos entorpecentes e de maneira desproporcional quando comparada às abordagens feitas a pessoas brancas.

Segundo dados da polícia da cidade de Nova York, 94,5% dos presos em 2020 por crimes relacionados à posse ilegal de maconha eram pessoas não brancas. Negros, que correspondem a 24,3% da população da cidade, são 57% dos detidos.

A disparidade racial é menor entre os latinos, que são 29,1% do total de pessoas e 35,7% dos encarcerados, mas fica evidente diante da proporção dos brancos -4,6% dos presos por ilícitos relacionados à maconha, embora sejam 32,1% dos nova-iorquinos.

Por isso, o projeto prevê que milhões de dólares em receitas fiscais do setor de venda de maconha sejam reinvestidos em comunidades formadas por essas minorias, e parte considerável das licenças emitidas para a comercialização da cânabis, reservada a empresários dessa faixa da população.

Assim, segundo o projeto, 40% da receita tributária da maconha serão investidos em comunidades formadas por minorias, outros 40% serão direcionados para a educação pública, e os 20% restantes irão para o tratamento, prevenção e educação contra drogas.

Ainda não há uma data definida para o início das vendas legais de maconha em Nova York, mas a estimativa é que elas comecem em 2022. O prazo é necessário para que as autoridades definam as regras de controle desse mercado, incluindo a regulamentação de atacadistas, normas de distribuição, cultivo e varejo e a criação de impostos.

Além disso, o estado criará um gabinete responsável por supervisionar o setor. Esse conselho será formado por cinco membros, três indicados pelo governador e os outros dois pela Câmara e pelo Senado.

Para a socióloga Nathália Oliveira, a nova lei tem um caráter simbólico e pedagógico porque parte de um movimento em que o Estado reconhece a nocividade de uma lei que atingiu de maneira desproporcional uma camada da população.

“A nova lei envolve a releitura histórica do processo, a crítica e a apresentação de medidas que corrijam rapidamente os efeitos dessa desproporcionalidade”, diz Oliveira, que é cofundadora da Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas, uma organização da sociedade civil brasileira que atua desde 2015 em busca de justiça racial e de reformas na atual política de enfrentamento às drogas.

Segundo a socióloga, uma aprovação dessa magnitude em Nova York abre espaço para reformas semelhantes em outros estados americanos e, principalmente, ajuda a construir precedentes para quando discussões similares chegarem com mais força ao Brasil -que importou o modelo de enfrentamento americano, baseado na lógica da guerra.

O historiador Dudu Ribeiro, coordenador da Iniciativa Negra, reforça o fato de que a criminalização do uso do maconha sempre esteve associada a políticas racistas e eugenistas. Esse pensamento levou intelectuais brasileiros a classificarem a droga como uma espécie de vingança dos negros recém-egressos da escravidão.

Nos EUA, John Ehrlichmann, que foi assessor do presidente Richard Nixon (1969-1974), revelou anos depois da criação do modelo americano de guerra às drogas que a população negra era um alvo preferencial.

 

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

 

“Nós sabíamos que não podíamos tornar ilegal ser contra a guerra ou ser negro, mas levando a opinião pública a associar os hippies à maconha e os negros à heroína, e criminalizando ambas severamente, nós poderíamos destruir essas comunidades”, disse Ehrlichmann em uma entrevista publicada após sua morte.

Para Ribeiro, portanto, a reparação histórica é um elemento fundamental na mudança da política de drogas, dentro e fora dos EUA, e precisa incluir ainda um potencial de responsabilização do Estado sobre os danos causados e a construção de políticas que equilibrem a participação das pessoas no mercado regulado de substâncias antes considerada ilícitas.

“Essa transformação deve estar conectada a um conjunto amplo de mudanças radicais, seja no sistema de segurança pública, seja na atuação do Judiciário para dar condições de fato, ao longo das próximas décadas, de superar as dramáticas condições promovidas em nome da guerra às drogas”, avalia o historiador.

Nos EUA, a aprovação foi comemorada por entidades e ativistas.

“Aplaudimos o Legislativo de Nova York e o trabalho incansável dos ativistas por seu compromisso em acabar com a proibição da cânabis por meio de uma abordagem centrada na justiça social”, disse Steve Hawkins, diretor-executivo do Marijuana Policy Project. “Mais de dois terços dos americanos acreditam que é hora de acabar com a proibição, e esta medida representa o exemplo mais recente de autoridades eleitas que se juntam ao coro de apoio à legalização e regulamentação da maconha para adultos.”

De acordo com uma pesquisa do Siena College publicada neste mês, quase 60% dos eleitores do estado dizem ser a favor da legalização da maconha recreativa. Entre os eleitores negros, que compõem uma parte expressiva da base política democrata, a taxa de apoio à medida sobe para 71%.

“Nosso movimento não lutou simplesmente pelo bem da legalização, mas trabalhou durante anos para elaborar uma legislação enraizada na justiça racial e econômica, em um esforço para reparar danos e, ao mesmo tempo, definir um novo padrão para a formulação de políticas antirracistas, com consciência de classe e de gênero”, disse Jawanza James Williams, diretor da organização Vocal-NY.

Para ele, a aprovação do projeto mostra “com o que a democracia realmente se parece quando a legislatura permite que movimentos progressistas conduzam à justiça”. “Este é um grande sucesso para todos os nova-iorquinos, especialmente os negros e latinos sobreviventes da proibição racista”, acrescentou Williams.

O grupo político de lobby pró-maconha Norml estima que o número de nova-iorquinos presos todos os anos por pequenos delitos relacionados à substância está na casa das dezenas de milhares, a maioria sendo jovem, pobre e não branca.

“A legalização da maconha é um imperativo de justiça racial e criminal, e a votação de hoje é um passo crítico em direção a um sistema mais justo”, disse a procuradora-geral de Nova York, Letitia James, em um comunicado.

“Por muito tempo, as pessoas não brancas foram desproporcionalmente impactadas por uma proibição desatualizada e míope da maconha, e já passou da hora de corrigirmos isso”, continuou a procuradora, acrescentando que a decisão desta quarta também é um passo importante para “arquitetar uma economia que proporcionará um impulso muito necessário às comunidades devastadas pela guerra às drogas e pela Covid-19”.