Putin dobra a aposta e assume figurino de comandante da guerra na Ucrânia

Vladimir Putin não envergou apenas uma parca italiana da exclusiva marca Loro Piana de R$ 70 mil na celebração do oitavo aniversário da anexação da Crimeia, evento no centro do atual conflito na Ucrânia. Após mais de três semanas, ele se apresentou aos russos com o manto de comandante-em-chefe de um país em guerra.

Nada no governo do ex-agente da KGB escapa a escrutínio de minúcias, como o brilhante documentário “Testemunhas de Putin” (Vitali Manski, 2018) demonstra, e a festa no estádio da final da Copa de 2018 foi devidamente coreografada.

Assim, chama a atenção a falha na transmissão do discurso do presidente na TV estatal, algo inusual, para dizer o mínimo, em tempos em que editores dessas empresas logram fazer protestos no ar contra o chefão.

Mas a mensagem estava passada. As cerca de 95 mil pessoas que lotaram o Lujniki, antigo Estádio Lênin, palco histórico do futebol russo, e as outras 100 mil nos arredores segundo as contas oficiais, viram uma nova etapa da comunicação de Putin na guerra.

Foto: Getty Images

Até aqui marcada por pronunciamentos anódinos na TV ou transmissões de encontros com ministros ou comissárias da Aeroflot, nas quais expunha as razões presumidas para a invasão, a narrativa do Kremlin estava longe de atiçar sentimentos nacionalistas.

Que tenha mudado com um Putin falando no sacrifício de nossos garotos e coisas do gênero, isso significa algo. Poucas autocracias no mundo dão tanto valor à opinião pública quanto a russa, e o acompanhamento de pesquisas de opinião é tão ou mais intenso do que nas democracias ocidentais.

Isso tem a ver com o arranjo de poder até aqui de Putin, em equilíbrio com uma elite formada por grupos rivais que se digladiam, deixando o czar, digo, o presidente reinar sobre todos. A legitimidade do mandatário vem muito do apoio popular.

Agora isso é algo insondável, dado que apenas institutos estatais apontaram o apoio à guerra, de talvez 60%. É possível que seja isso mesmo, dizem analistas russos que não mais têm coragem de se expor por temer os 15 anos de cadeia da censura militar.

Mas talvez 60% seja pouco. Quando anexou a Crimeia sem dar um tiro, em 2014, Putin viu sua popularidade explodir para níveis perto dos 90%. Ficou assim durante a recessão subsequente, só superada após 2016, embora a economia russa nunca mais tenha se levantado –com um soluço no festivo 2018 da Copa.

Até antes da guerra, estava em confortáveis 69% segundo o confiável instituto independente Levada. A demonstração desta sexta (18), portanto, pode ser meramente uma fotografia para mostrar ao mundo. “Há muito tempo não se via tanta unidade”, disse o líder. Mas há outra hipótese.

Especialmente entre os mais jovens e ocidentalizados, membros da classe média que Putin quer ver agora expurgada do país, a guerra é altamente impopular. Mostrar força pode ser uma tentativa de galvanizar apoio interno à guerra, algo que se insinua de forma lenta.

O motivo é o roteiro de propaganda do Kremlin, que parecia contar com uma submissão rápida da Ucrânia. O conflito seria com poucas baixas, vencido pela impressão de poder dos russos. Assim, seria uma guerra de gabinete, televisionada. Com o recrudescimento em solo, contudo, Putin teve de abrir a caixa de ferramentas em casa.

Uma chave é o Z, a letra latina inexistente no cirílico que virou o símbolo da guerra, pintada em tanques e blindados Ucrânia adentro. Nesta sexta, estava na plateia, nas cores heroicas da flâmula de São Jorge (preto e laranja), símbolo do poderio militar russo desde o império dos Románov e amplificada ao máximo no governo Putin.

Mas seu uso mais ostensivo estava nos telões do estádio. Enfileiradas, estavam as palavras Rússia, Crimeia e Donbass –a última, a região separatista russófona que foi reconhecida como dois países por Putin três dias antes da guerra, e cuja defesa da população constituiu sua desculpa inicial para a ação.

Em destaque, “Za presidenta”, “Pelo presidente”, com o Z inexistente no cirílico em letra latina mesmo. Também apareceram “Por um mundo sem nazismo”, “Pela Rússia”, tudo como o Z alienígena. Uma das suspeitas de ter criado o marketing do Z, a editora-chefe da rede RT, estava lá para discursar. Mas o ponto vendido que importa é outro: a partir de agora, a guerra é por Putin.

Se essa aposta dobrada transparece desespero por apoio ou a certeza na vitória a ser faturada, só o tempo vai dizer.