Desembargador que humilhou guarda e se recusou a usar máscara diz ser "vítima de armação"

Desembargador que humilhou guarda e se recusou a usar máscara diz ser

"O vídeo é verdadeiro, o fato realmente aconteceu, mas foi tirado do contexto, que eu gostaria de esclarecer, para que seja considerado nesse verdadeiro julgamento público – ou melhor, linchamento – que se estabeleceu sobre a minha conduta, sem que a minha versão dos fatos seja conhecida", escreveu ele.

"Estamos vivendo um momento conturbado, de pandemia politizada, que tem sido usada para justificar abusos, desmandos e restrições de direitos, que eu como magistrado não posso aceitar. Um desses abusos, a meu ver, é a determinação, por simples decreto, do uso de máscara", argumentou ele, que é reincidente no desrespeito ao decreto municipal que exige o uso de máscaras de proteção em vias públicas de Santos.

Para o desembargador, apenas leis criam obrigações e, por isso, o cidadão não seria obrigado a seguir determinações estabelecidas em decretos. "A abordagem foi editada e completamente diferente das que recebi antes, com uma câmera previamente ligada, fazendo parecer que de vítima sou o vilão. Não vou aceitar, magistrado que sou, os direitos dos cidadãos serem ilegalmente tolhidos e cerceados. Tomarei as providências cabíveis para que meus direitos sejam preservados e para que os verdadeiros vilões respondam por seus atos" disse, no texto divulgado.

"Sim, ontem [sábado, 18/7] eu me exaltei, porque não foi a primeira vez e, se eu deixasse passar, sem comunicar imediatamente ao secretário de Segurança Pública, que é o responsável pela Guarda Municipal de Santos, quem sabe não seria a última", argumentou. "No mais, estou à inteira disposição dos órgãos competentes para maiores esclarecimentos", concluiu.

O caso

O desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo humilhou um guarda-civil após ser multado por andar sem máscara na orla de Santos, cidade do litoral sul paulista, na tarde de sábado (18). Siqueira, 63, chamou o agente de fiscalização de "analfabeto", rasgou a multa e ainda tentou se livrar da punição comunicando o fato ao secretário de Segurança Pública da cidade.

Toda a abordagem foi filmada pelos guardas-civis, e as imagens viralizaram na internet. (Assista ao vídeo AQUI)

Nas imagens, Siqueira é abordado na praia por um guarda-civil que afirma que ele deveria cumprir o decreto municipal que obriga toda a população usar o equipamento.

O item de proteção que auxilia no combate à disseminação do novo coronavírus é obrigatório durante a pandemia na cidade por meio do decreto nº 8.944, de 23 de abril de 2020, assinado pelo prefeito Paulo Alexandre Barbosa (PSDB). Quem descumpre a medida pode ser multado em R$ 100.

"Mas decreto não é lei", responde o desembargador. O guarda-civil, então, sai do carro da corporação e insiste para que Siqueira coloque a máscara. "Eu não tenho hábito de usar", afirma ele. "Você quer que eu jogue [a multa] na sua cara? Então faça, aqui, a multa", continua o desembargador.

"Eu vou fazer a multa e o senhor joga na minha cara", responde o guarda-civil.

Nesse momento, Siqueira pega o celular e diz ligar para o secretário de Segurança Pública de Santos, Sérgio Del Bel Júnior. "Del Bel, eu estou aqui com um analfabeto, um PM seu aqui, um rapaz. Eu estou andando sem máscara. Só estou eu aqui na faixa de praia. Ele está aqui fazendo uma multa [contra mim]".

Na suposta conversa, o desembargador insiste que o decreto municipal não tem força de lei. "Eu expliquei de novo, mas eles [guardas-civis] não conseguem entender", diz.

O desembargador tenta fazer o guarda-civil falar no celular com o secretário, mas o agente se nega e pede para que o secretário, se assim desejar, ligue diretamente no celular dele. A conversa termina com Siqueira dizendo que tudo ficaria tranquilo.

"É para fazer o procedimento e rasgar", diz o desembargador. O agente pede para Siqueira dizer seu nome e ele se nega. O guarda insiste e pede os documentos pessoais de Siqueira, que pergunta ao guarda-civil: "Você sabe ler? Então leia bem com quem o senhor está se metendo", diz o desembargador.

Ao redigir a multa, o guarda-civil pergunta: "O senhor vai assinar?". O desembargador responde: "Imagina! Isso aí eu vou rasgar". Ele cumpre o que promete, mas, antes, é avisado pelo agente que se rasgasse a multa e jogasse o papel na praia sofreria uma segunda penalidade por despejo de lixo em via pública.

O desembargador rasga a multa, joga o papel na areia da praia e sai caminhando. A cena choca uma mulher que passa logo em seguida e diz ter visto muita gente sem máscara. "Essa é a quinta autuação que eu faço hoje, senhora", diz o guarda.

Investigação

O Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou, em seu site, que ao tomar conhecimento do caso instaurou um procedimento de apuração, requisitou a gravação original da abordagem e ouvirá, com a máxima brevidade, os guardas-civis envolvidos e o magistrado.

"O TJSP não compactua com atitudes de desrespeito às leis, regramentos administrativos ou de ofensas às pessoas. Muito pelo contrário, notadamente em momento de grave combate à pandemia instalada, segue com rigor as orientações técnicas voltadas à preservação da saúde de todos", disse.

O caso também será apurado no CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Para o ministro Humberto Martins, atual corregedor da instituição, a conduta de Siqueira pode ter violado a Lei Orgânica e o Código de Ética da Magistratura.

O desembargador paulista terá 15 dias para responder os questionamentos do conselho.

Segundo especialistas em direito ouvidos pela reportagem, o magistrado também pode ser enquadrado na lei de abuso de autoridade, que define os crimes cometidos por agentes públicos.

Pelo texto da lei, quem utiliza a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido pode ser condenado de seis meses a dois anos de prisão, além de pagar multa.

Esta, porém, não foi a primeira vez que o desembargador destratou guardas-civis em Santos durante a pandemia.

Em outro vídeo que circula na internet, Siqueira aparece sem máscara e desrespeitando os agentes.

Quando um dos fiscais tenta convencê-lo a usar o item de proteção e afirma que o magistrado é uma pessoa mais esclarecida, Siqueira concorda que é culto e começa a falar em francês com os guardas em tom jocoso.

A reportagem também procurou a Prefeitura de Santos e o secretário de Segurança Pública da cidade para comentar o caso, mas não obteve respostas até a publicação deste texto.

DESEMBARGADOR COORDENOU ÁREA DE SAÚDE

Natural de Jaú (SP), Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira ingressou na magistratura em 1983. Atuou nas cidades de Bauru, Santos, Nova Granada, Ribeirão Pires e na capital paulista.

Foi nomeado desembargador em maio de 2008. No Tribunal de Justiça de São Paulo, ele coordenou a secretaria de Saúde do órgão. O setor é o responsável por diagnosticar, monitorar e implementar ações de prevenção e rastreamento de doenças e promover a readaptação de servidores.

Em sua cerimônia de posse, Siqueira foi representado em discurso feito pelo colega Pedro Aguirre Menin, que citou palavras do Papa João Paulo 2º ao lembrar que "o juiz deve ir além da própria Justiça sempre com equidade e o equilíbrio necessários às suas decisões".

"Sonhávamos em ser bons juízes e aplicar a Justiça segundo as leis do direito. Hoje, alcançamos o mais alto grau da magistratura bandeirante, mas a caminhada continua e o caminho é longo", segundo trecho do discurso.

Atualmente, o magistrado integra a 38ª Câmara de Direito Privado do tribunal.