Quem é Salman Rushdie, escritor esfaqueado nos EUA e perseguido por blasfêmia

Nesta sexta-feira, um homem branco, de cabelo raspado e com roupas camufladas por baixo de um casaco preto, invadiu o palco e esfaqueou o escritor de 75 anos no pescoço, segundo nota da polícia à imprensa. Uma testemunha contou à agência Associated Press que viu o autor receber de 10 a 15 golpes. O autor caiu no chão, foi socorrido e levado ao hospital de helicóptero.

A recompensa pela sua cabeça era de US$ 2,5 milhões em 1997, passando para mais de US$ 3,3 milhões em 2012. Em 2016, até meios de comunicação estatais do Irã se reuniram para arrecadar mais US$ 600 mil na recompensa pela cabeça do autor.

Apesar de oficialmente a fatwa -um decreto religioso, no caso, uma que ordenou a morte de Rushdie por blasfêmia a Maomé- já ter sido dita como encerrada em 1998 pelo ex-presidente iraniano Mohammad Khatami, na prática, a perseguição nunca parou.

Ela, inclusive, se estendeu para outras pessoas ligadas ao livro, como tradutores. Em 1991, o tradutor japonês do livro, Hitoshi Igarashi, foi assassinado na Universidade de Tsukuba, e acredita-se que a fatwa tenha motivado o esfaqueamento. O tradutor da obra para o italiano, Ettore Caprioli, e o editor do livro na Noruega, William Nygaard, também sofreram ataques nos anos 1990, mas sobreviveram.

“Os Versos Satânicos”, em particular, conta a história de dois atores indianos muçulmanos que sobrevivem a um atentado num avião e, quando caem na Inglaterra, um se transforma num anjo, outro num demônio. Enquanto um recebe visões do Arcanjo Gabriel e perde a sanidade, espantado por eventos fantásticos da história e mitologia islâmicas, o outro passa a ser tratado com repulsa pelas autoridades britânicas que estimava.

Foto: Joshua Goodman/AP

Um dos centros da polêmica está nas alucinações do anjo, que evoca um episódio controverso do Islã, onde o profeta Maomé teria sido enganado pelo diabo, com versos que acabaram incorporados ao Corão e depois teriam sido retratados pelo profeta ao perceber seu erro. Dentre as cenas alegóricas que tratam ainda sobre o período colonial, a aiatolá Khomeini também aparece de forma alegórica.

Rushdie veio de uma família muçulmana liberal, mas hoje se considera ateu. Já em 1989, dizia “não acreditar em entidades sobrenaturais, sejam cristãs, judias, muçulmanas ou hindus”. No ano seguinte, ele até tentou dizer publicamente que tinha renovado sua fé no Islã, condenando os ataques à religião feitos pelos personagens de seu romance. Posteriormente, disse que estava fingindo.

Ele também já deu declarações em que chama religiões de “uma forma medieval de irracionalidade”, e criticou o “totalitarismo religioso” que teria surgido da união da Igreja com um Estado fortemente armado.

Numa lista divulgada em 2010, Rushdie aparecia como um dos alvos da Al-Qaeda, onde também estavam nomes como o de Stéphane Charbonnier, um dos cartunistas mortos no atentado ao jornal satírico Charlie Hebdo, em 2015.

Desde o episódio envolvendo este que segue como seu livro mais célebre, Rushdie passou a viver sob forte segurança no Reino Unido, onde estudou desde a juventude. Ele vive nos Estados Unidos desde 2000.

O autor nascido em Bombaim venceu o Booker, principal prêmio da literatura em língua inglesa, por “Os Filhos da Meia-Noite” em 1981, e tem entre seus outros livros mais famosos “O Último Suspiro do Mouro” e “Oriente, Ocidente”. Ele é publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

Em “Joseph Anton”, sua obra mais autobiográfica publicada há dez anos, ele conta as memórias de seus anos se escondendo da perseguição religiosa com o nome falso que intitula o livro.

Seu projeto literário é marcado pela exploração fantástica das tradições religiosas e culturais de diversas civilizações espalhadas pelo mundo, sempre com um estilo afiado e sem concessões. O incômodo provocado por “Os Versos Satânicos” envolvia o fato de o livro ficcionalizar a vida do profeta Maomé.

Durante o lançamento de seu livro mais recente, “Quichotte”, no ano passado, ele deu entrevista a este jornal defendendo a reconstrução de verdades objetivas pelo jornalismo em um mundo cada vez mais conduzido por narrativas e crenças subjetivas.